sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Uma noite sonhamos com unicórnios*



Por Lina Vaz Retratos 

Na alegoria camusiana, a condenação do homem indiferente ao funeral da mãe. Em sua existência desinteressada, não chorou. Sem dia seguinte, sem esperança, sem ilusões. O familiar, o demasiado familiar, encosta-nos ao bocejo, entedia-nos, prende-nos numa cerca a suspirar por ventos, tempestades, unicórnios. 

Hostilizamos a estranheza, o estrangeiro. Procuramos refúgios, às vezes,  para fugir dos outros fugindo um bocadinho de nós próprios, como um actor que dá descanso à personagem estudando sem cessar o próximo papel.

Pensar é morrer em vida. O homem é um animal racional, porém para agir racionalmente precisa exilar-se no pensamento. Nós já creditamos muito ao pensamento de superar os deuses a sermos felizes. 

Há que se ter um refúgio. Um lugar em tempo e espaço teu, um pós-útero. Coisa de quem precise estar consigo mesmo, conversar com seu Daimon sem intervenções. O lugar intocável aos outros, no qual a entrada é permitida somente a si e aos seus. Todos temos os nossos outros.

Já não acreditamos mais no exílio. O livro se tornou o único espaço para o pensamento, principalmente numa era em que alucinantes imagens nos pulam a cara e, os sons estão cada vez mais ensurdecedores. O livro se torna o último espaço para o refúgio, a fuga para a experiência do pensar. 

Os livros dão-nos palco, aplausos e raízes. E despem a nossa nudez. Ou vestem-nos quando estamos mais nus. E só as distopias os tornam obsoletos. Ampliamos lugares, reescrevemos palavras e ações. Transportamos o único subterfúgio em possíveis-espaços-pensar. Convertemos a palavra-leitor para o duplo: eu-outro, eu-mundo, eu-palavra. Eu-eu, conversações in-finitas. Lugar do si mesmo. 

* Escrito a seis mãos com Margarida Torres e Pedro Possebon 
PS: amigos para sempre

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

O lugar dos animais hoje. Ou, em que os bichos se diferem de nós?


Há algum tempo, eu e um amigo travamos uma conversa. Travamos mesmo, pois o diálogo não se desenvolveu. Ele acreditou que estávamos debatendo, no entanto, em momento algum procurei por vitórias ou derrotas de argumentos. Eu buscava compreender o motivo ou o sentido do que ele dizia sobre a preferência dos bichos em detrimento das pessoas. Comparou o tratamento dado aos animais de estimação versus aos colegas de trabalho, afirmou, inclusive, notar melhor atenção àqueles de quatro patas do que aos próprios cônjuges.

Para o meu amigo, isso implicava em um problema ético, além de outros, como carência extrema e inversão de valores. Há que se ter uma hierarquia de sentimentos, dizia. Se um barco tiver afundando e for preciso escolher entre um cão ou um ser humano, quem deverá ser salvo, questionou.

Confesso que fiquei surpresa! Os cinco cães e a gatinha que vivem comigo são considerados como parte da família, ocupam lugar de filhos, muitos outros amigos e boa parte das pessoas com animais de estimação também os consideram assim e, como sabemos, isso se estende para o âmbito jurídico nas disputas pela guarda, preferencialmente compartilhada, ou avaliada para garantir melhor qualidade de vida e bem estar dos bichos, de modo semelhante ao que ocorre com os filhos.

Após as reflexões e uns escritos de relance, guardei as palavras, deixei amadurecer o pensamento. A temática dos bichos, além de aflorar as minhas emoções, desperta o meu interesse como objeto de estudo. Ao meu tempo, e tenho feito as coisas com muita calma ultimamente, prossegui a leitura de uma tese em defesa dos animais de Alfredo Migliore, umas 400 páginas que me prenderam graças à capacidade narrativa do autor em fugir dos cânones acadêmicos, abarcando para a autocriação e a ampliação da lealdade.

Ao questionar sobre os direitos subjetivos dos animais, em especial, dos grandes primatas, a pergunta de Migliore, basicamente, é: reconhecendo os fundamentos que legitimam a personalidade jurídica e de direitos a partir da dignidade, moralidade e igualdade a todo e qualquer ser humano, poderiam esses mesmos princípios legitimar também o reconhecimento de direitos aos animais não-humanos?

A dignidade não é algo que se possa proclamar nem conquistar. É algo que se reconhece: o respeito aos direitos comuns a toda espécie humana que resulta da sua própria natureza. Para além da dignidade humana, pode-se comparar a natureza animal à própria continuidade evolutiva. Todas as formas que vivem atualmente são descendentes das que viviam outrora, seja pela premissa evolucionista de Darwin, pela teoria do gene egoísta de Dawkins ou da integração funcional dos organismos de Cuvier, a conclusão aponta para uma série contínua que os biólogos chamam de “continuum”.

No campo do direito, a moral comumente é associada a uma categoria exclusivamente humana, corresponde à emoção, à capacidade de compaixão, à conduta de prevenir ou evitar o sofrimento alheio. Embora aleguem exclusividade moral ao homem, sabemos de muitos casos dos sentimentos, percepções e emoções altruístas nos animais entre os seus e entre espécies diferentes, como exemplo, os relatados de “A compaixão dos animais: histórias verdadeiras sobre a coragem e a bondade dos animais” de Kistian Von Kreisler.

Por fim, a igualdade, não é uma medida de equiparação absoluta entre homens e animais em todos os níveis, nem mesmo os seres humanos são iguais, no entanto, rompida as barreiras das espécies, pode ser admitida uma igualdade natural que permita igual consideração por seres diferentes nos quais impliquem tratamentos e direitos distintos. Além disso, todos somos capazes de sentir prazer e dor, naturalmente, e é de interesse vital evitar o quanto possível a dor alheia e o sofrimento de um ser sensível a ela.

Embora seja importante reconhecer direitos, sempre haverá conflitos entre grupos mais fortes que outros, já que o homem vive uma realidade antagônica em relação aos animais. Somos capazes de proteger nossos cães e gatos, e até temos acompanhado criações de animais exóticos, iguanas, coelhos e porquinhos, enquanto animais domésticos se comportam como verdadeiros filhos de quatro patas! Temos os bichos como um de nós e os protegemos como parte da matilha humana, no entanto, ainda matamos o boi, permitimos o descarte de pintinhos machos, o enclausuramento dos frangos e porcos para alimentação, sem falar nos laboratórios e experimentações para fins cosméticos e farmacêuticos.

O que eu aprendi de mais relevante com os escritos de Migliore, é que tão importante quanto a capacidade e a personalidade jurídica, o que faz a grande diferença na proteção dos animais é a lealdade interpessoal. Temos que garantir direitos aos animais, mas, sobretudo, temos que ampliar nosso rol de lealdade aos bichos. E é isso que eu tenho visto acontecer nos grupos de proteção, nos movimentos de repúdio e comoção aos maus tratos e caçadas, como foi o caso do leão Cecil. Sei também que muitos outros, além de mim, consideram seus bichos como filhos de quatro patas e não pensariam duas vezes em salvá-los dum naufrágio caso tivessem que escolher entre eles ou um dentista imoral.