domingo, 13 de outubro de 2013

Onde foram parar as crianças?

Estava aprendendo a ficar só, até você chegar, até as outras pessoas virem falar comigo, até me tirarem do meu próprio aprendizado de enfrentar a solidão. Ela já é uma presença antiga de ausência. Eu brincava sozinha quando criança, embora ninguém brinque bem assim, passava os meus dias na grande casa rodeada de adultos, corria para o terraço da frente para ver as crianças do prédio vizinho brincando e sorrindo. Eu não. Não me deixavam sair para o lado de fora. Eles me pouparam dos perigos que toda criança deve aprender a enfrentar sozinha. Eu cresci. Os perigos se tornaram mais perigosos. Um acúmulo daquilo que não fora enfrentado. Uma repetição: a sensação de estar só, quando não se está, o querer ficar só na tentativa de rever o gostinho do passado, os olhos voltados para a brincadeira lá fora. Não estou inventado uma infância triste, só relembrando algumas cenas, porque também havia os dias belos no carinho da família. Relembrando a solidão passada, penso nas crianças de hoje, elas talvez se sintam ainda mais presas e solitárias do que fui, num mundo de trânsito violento e espaços nos quais se poderia brincar, mas estão invadidos por carros nos estacionamentos. Como é que se brinca de pique-esconde, queimada e caí no poço hoje em dia? Onde foram parar as crianças? A rua não é mais um lugar seguro para elas? Então como é que vão aprender a se deslocarem pela cidade? Quando terão o prazer de irem sozinhas para a escola? Ou comprar um pão na padaria? Vocês podem dizer: “o mundo está cada dia mais perigoso, melhor deixar as crianças em casa”. Ué, mas as crianças fazem parte do mundo, não fazem? Aliás, o perigo não é uma exclusividade do mundo, sabemos de cor as palavras de Guimarães Rosa: “viver é perigoso”. Talvez esteja passando da hora de repensarmos os espaços das cidades para as crianças, de devolver as ruas para as pessoas, deixar menos automóveis para que possam circular mais idosos, adultos e crianças. Ou então ficará tarde demais, alguns idosos não poderão mais sair das suas casas porque o tempo do sinal verde será muito curto para darem conta de atravessar, as crianças se encontrarão com os pares somente na escola e brincarão somente o tempo do intervalo com as possibilidades de brincadeiras limitadas, muitas ficarão sozinhas em casa no contra-turno e sem irmãos, ficarão dependentes de uma infância que passou e não foi vivida, porque nunca subiram numa árvore ou tiveram que se esconder, dar a volta no quarteirão e correr pra valer até rebater no pique.

  *Texto inspirado no livro “Quando as crianças dizem: agora chega!” de Francesco Tonucci

4 comentários:

  1. Verdade, Lívia. O mundo está assim. Contudo, existem crianças cujos pais se preocupam em lhes dar uma vida até certo ponto baseada na que viveram. Não é fácil, demanda em muita boa vontade, mas os que querem procuram uma vida o mais "normal" possível para suas crianças. Os perigos das ruas, o movimento incessante dos automóveis, a criminalidade, estes afastam até mesmo os adultos...
    É preciso uma grande campanha de conscientização sobre isso, sobre devolver a infância para nossas crianças, senão não iremos chegar a lugar nenhum. Triste constatação!
    beijo!

    ResponderExcluir
  2. Obrigada, Lúcia! Os adultos devem se reunir com as crianças para repensar e elaborar novas propostas para as ruas: espaços de lazer comum e abertos, isso deve envolver a todos e fazer parte das políticas públicas. Um beijinho ;-)

    ResponderExcluir
  3. São questões totalmente relevantes, e que não são devidamente consideradas. Crianças hoje, "brincam" de ser adultos, cada vez encurtam mais os anos para fugirem das responsabilidades.
    ótimo texto, gostei muito !

    =]

    ResponderExcluir
  4. Obrigada, Artur! Os perigos de não ser criança, quando se deve ser, estão para toda vida. Acontece que muitas demandas não vivenciadas pelas crianças vão acompanhando a fase adulta, daí o acerto de contas. ;-)

    ResponderExcluir