sábado, 16 de agosto de 2014

Três traços do desejo



Antes de iniciar os traços tão universais para a proposta que trago hoje, vou contar um pouquinho das minhas últimas experiências, sempre singulares, já que o meu blog é, sobretudo, um blog pessoal. O que em nada, nadinha, impede, em boa medida, o intercruzamento das partes com o todo.

Levei um puxão de orelha do meu orientador essa semana. É que mandei o meu trabalho para os professores que irão me avaliar na qualificação (isso no final do semestre passado, daí teve as férias e até casar a data de todos, marcamos o exame para o final de agosto). Com isso, aproveitei para viver um pouco. "Por que você não está escrevendo?", foi o que recebi no e-mail. Para ficar livre logo, respondi que não sabia mais o que escrever, lógico, levei outra bronca em seguida. Eu estava mentindo. Na verdade, o meu orientador não sabe que eu já não aguentava mais escrever, já não aguentava mais aproveitar todos os momentos livres dos meus dias para ficar pensando, estudando e escrevendo com rigor acadêmico. Escrevendo de um jeito que satisfizesse a todos, menos a mim. Explico: para que eu escreva do meu jeito, a primeira coisa que eu preciso é de tempo. Um tempo meu e só meu. Eu pego as minhas coisas e fico junto delas numa interação de tal modo que não me importa as louças para lavar, se tem lixo para botar fora ou se tem algum outro compromisso. Tudo é ignorado e o mundo passa a ser eu e o meu objeto de pesquisa. Acontece que além de pesquisadora eu também sou mulher. Mulheres são vaidosas e precisam se cuidar, logo, precisam ir à acadêmia com certa regularidade. Mulheres também precisam de dinheiro, principalmente as que dispensam bolsa de estudo em prol de um trabalho estável, logo, elas têm que se deslocar no terrível trânsito das metrópoles e, ao perceberem que as opções de transporte são degradantes, elas necessitam desesperadamente de um carro para chamar de seu. Caso não saibam dirigir (por motivos diversos como medo, preguiça ou desinteresse), logo estarão matriculadas numa autoescola e, assim, terão uma sobrevida agitadíssima: autoescola-academia-trânsito-trabalho-trânsito-CAMA. Entre os turbilhões de afazeres: dissertação. Daí, ter que se concentrar no pouco tempo disponível e fazer valer o máximo de produção, segundos os critérios exigidos, assim o fez. Concentrou-se em demasia. Quando, finalmente, cumpriu o necessário para enviar o trabalho, o próprio corpo tratou também de entregar uma produção: um surto de bolinhas vermelhas. Descobriu-se alérgica. Tinha alergia a quê? Nada mais lhe passava que não a figura daquele homem exigente: "assim você não irá se qualificar!". Queixou-se ao analista. Este lhe deu o seguinte trocadilho: "Você está dando bola demais para esta pesquisa!". Ouviu então o seu corpo, pela escuta intermediada no divã.

O meu corpo surpreende, mas não engana, estava me devolvendo a vida. Isto significa dar prosseguimento aos meus desejos. Eu estava com uns livros de literatura parados, peguei de volta. Tive oportunidade de estar junto a um grupo de estudos em filosofia com um autor que admiro muito, foi maravilhoso. Peguei temas da psicanálise que me despertam super curiosidade e estudei. Continuo com várias inquietações, o tempo nunca é o bastante! Mesmo assim, a gente dá um jeito. Vive. Recria. Escreve. Faz o que tem que ser feito.

Agora sim, voltamos ao título do post, não sem antes dizer que cada um dos traços será ilustrado com músicas das quais ouvi nos últimos dias, escolhidas a partir da discografia de Rammstein recebida de uma amiga.


(I) Obsessivo

Ele constrói uma casa para trancar sua amada. Transforma as lágrimas em pedra. Sem janelas e sem porta. Quer guardá-la só para si. Trancá-la.

Querem um casamento duradouro? Casem com um obsessivo! Só estejam dispostas a pagar o preço: o obsessivo anula o outro, reduz o parceiro a condição de objeto, objeto de gozo, lugar que as histéricas ocupam com facilidade.

Obsessivos querem um amor que dure para sempre e, para isto, abrem mão do desejo, assim não se arriscam a perder o que lhes é mais precioso: a emparedada (ou o emparedado)!





(II) Histérico

 Sedutora. É a estrela mais brilhante de todas.  Dramatiza, encena. Recua e retrai.





Ah, as histéricas (e também os histéricos, embora o draminha e a queixinha caiam melhor com elas)! Estão sempre demandando, dão muito trabalho! Mas nada lhes bastam: têm desejo de desejo insatisfeito, logo que obtêm, desejam sempre outra coisa.

Se o obsessivo goza sem desejo, a histérica deseja sem gozo. Ela não quer gozar, ela quer desejar. Isto não significa, atentem bem, que ela não goze. Ela goza (exageradamente) e, quando o faz, sofre e padece desse gozo. 

Por ser essa caixinha de surpresas que é, cabe aqui outra música para a histeria, que foge totalmente da discografia em questão. E vocês acham que mesmo assim, recebendo duas músicas, elas estarão satisfeitas? Ha ha!





(III) Perverso

Enquanto a histérica ascende e apaga, feito vaga-lume, e o obsessivo se fixa para que tudo permaneça apagado, ou seja, proibido (não para burlar a lei, mas para economizar energia mesmo!), deixa a luz apagada para a conta não vir tão alta, já que ele está sempre em débito, ao sofrer com a lei. Quem burla a lei é o perverso, ele é o dono do jogo! Se o obsessivo quer para todo sempre, o perverso até diz para-sempre-de-brincadeirinha. Todo sempre para ele é muito tempo. Se fixar a uma promessa é o mesmo que aceitar a morte. O que ele faz? Recusa o fim para recusar a castração, por isso, precisa de alguém que lhe seja cúmplice. Um cúmplice que testemunhe o seu saber, que jogue conforme suas regras (a partir da sedução provocada como espelho do próprio desejo do outro). Um cúmplice que goze conforme o seu prazer, pois só ele, o perverso, seria, então, o senhor do gozo.    





Pronto, como eu queria, aqui estão os traços. Caberiam muito mais palavras e possibilidades descritivas de cada um. Talvez eu volte outras vezes e escreva mais sobre isso. O que importa agora, para fechar, é dizer que foram postas aqui como caricaturas inspiradas no viés da psicanálise. Embora possamos falar em estruturas tais e quais, isto não significa dizer que alguém seja exatamente estruturado assim ou assado. Cada um tem lá suas estruturas, o que não impede de surpreender com traços de outras, porque, como sabemos, ninguém é lá uma forma nem está moldado. 

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